Ísvarapranidhana, aprendendo a se entregar

Patrícia Lima

Ísvarapra?idhãna é um termo em sânscrito composto por duas palavras: ísvara e pra?idhãna. Ísvara literalmente significa “dono do melhor, bonito”, “governante das escolhas, bênçãos,”. A raiz da palavra Ísvara é ís, o que significa “capaz de” e “proprietário, governante, chefe de”. A segunda parte da palavra é vara, que significa dependendo do contexto, “melhor, excelente, bonito”, “escolha, presente”. É importante pontuar que a palavra ìsvara* tem ampla gama de significados que dependem da era e da escola do hinduísmo, ora como um conceito metafísico, ora como consciência pura, ora como uma deidade e ora como espiritual, porém não religioso.

Nos Yoga Sutras, Patanjali Ísvara como um puruhsa (alma) especial, que é livre de qualquer sofrimento, livre de qualquer karma, uma alma onisciente e também a fonte de todo o conhecimento, sem evidenciar nenhum sentido antropomórfico ao termo.  Sendo assim, Ísvara é totalmente livre de aflições.

 Pra?idhãna também tem uma gama de sentidos, como aplicação, aceitação, colocação, devoção e meditação. Muitos yogues utilizam o termo Ísvarapranidhana para expressar a sua visão teísta e entendem pranidhana como entrega e devoção a Ísvara como um deus supremo. Para compreender os diversos aspectos de Ísvara é importante considerar os adjetivos que Patanjali atribui a ele e os momentos em que Ísvara é citado nos Yoga Sutras.

Primeiramente ele cita Ísvara no primeiro capítulo quando ele está sugerindo várias maneiras de pacificar a consciência, dentre elas : 1.23 Ísvara pranidhanat va. O va significa ou, que é uma conjunção coordenativa alternativa, o que significa que Patanjali realmente estava dando várias alternativas para tornar a mente calma, dentre elas Ísvara pranidhanat.

No segundo capítulo novamente ele cita Isvara pranidahana ao falar de Kriya Yoga (o yoga da purificação e ação). Junto com sáuca (purificação) e Tapas (disciplina), Ìsvara pranidhana também é necessário para que as ações de purificação aconteçam. Ou seja, é necessário disciplina e purificação e também a entrega, o que nos faz lembrar dos termos abhyasa (prática constante) e vairagya (desapego) que Patanjali cita como fundamentais para alcançar o estado de yoga. Ou seja, a prática é necessária, o desapego aos seus resultados e talvez o mais importante, a meu ver, o desapego ao apreço a si mesmo por ter conseguido executar a prática.

Em seguida, ao falar dos oito passos para se alcançar o estado de yoga, ele coloca ísvara pranidhana no segundo passo (niyamas) que são atitudes a serem observadas para consigo mesmo. Aqui Patanjali diz que a prática de ísvara pranidhana também pode levar ao samadhi.

É muito importante lembrar que em nenhum momento Patanjali atribui qualidades antropomórficas a Ísvara e nesse contexto ele pode muito bem ter a conotação de renúncia, de não se submeter às necessidades do ego, inclusive às necessidades de iluminação impostas pelo próprio ego para autogratificação. E o que importa é a percepção que o ego é apenas um aspecto de nós e que a grande confusão que fazemos é fundir o ego à alma.

Ísvara nesse sentido é a perfeição, a alma livre de aflições e de desejos. É essa entrega, é essa submissão que é importante aqui, levar o ego a perceber a perfeição que está acima dele.

Ísvara é aquele que é pleno, pois tem clareza na mente. Esse é o nosso objetivo espiritual: a busca pela plenitude, discernimento, clareza que nos lembra que temos uma luz interior, a “centelha divina” citada em todas as crenças. Entrega, aceitação, meditação são práticas em si mesmas capazes de nos orientar no caminho espiritual. Então, pranidhana como essa entrega, aceitação ou meditação nos tira a necessidade de estarmos sempre no controle (ego). Nos ajuda a entender que estamos sujeitos as intempéries da vida, ainda que tentemos a todo custo impor a nossa visão, nos ensina a parar, contemplar e perceber a nós mesmos. Contemplar o divino em nós e no outro nos torna mais humanos, nos conecta um com os outros, aumenta a autoestima e diminui a sensação de nos sentirmos deslocados do todo. Patanjali diz que a prática de Isvarapranidhana dissolve os obstáculos no caminho e nos leva a perceber nós mesmos. Nesse sentido, Ìsvara é o que nos sustenta, a fonte de conhecimento e nutrição. Meditar nessa fonte (em nós mesmos e naquilo que consideramos “perfeito” externamente) entregar e relaxar nessa fonte é o propósito de Ísvarapranidhana.

* A literatura religiosa posterior em sânscrito amplia a referência deste termo para se referir a Deus, o Brahman Absoluto, o Eu Verdadeiro ou a Realidade Imutável. No Shaivismo (adoradores de Shiva) Ishvara é sinônimo de “Shiva”, às vezes como Maheshvara ou Parameshvara que significa o “Senhor Supremo”, ou como um Ishta-deva, um deus pessoal. No Vaishnavismo(adoradores das formas encarnadas de Vishnu, sendo que o mais popular é krsnha) é sinônimo de Vishnu.  No Budismo Mahayana é usado como parte do composto “Avalokite?vara” (“Senhor que ouve os gritos do mundo”), o nome de um bodhisattva reverenciado por sua compaixão. No contexto budista Vajrayana, Ishta-deva é o mesmo que Yidam, a “referência” externa do divino. Na escola Advaita Vedanta, Ishvara é um Absoluto universal monista que se conecta e é a Unidade em todos e em tudo.

 

 

 

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